(André Luiz acompanha uma senhora médium, desdobrada durante o sono, adoecida de ciúmes)
(Do livro Libertação. André Luiz/Chico Xavier. 11a edição. 1984. Federação Espírita Brasileira)
Finda a reunião, reparei
que a médium Dona Isaura Silva apresentava sensível transfiguração.
Enquanto perduravam os
trabalhos, mostrava radiações brilhantes, em derredor do cérebro, oferecendo
simpático ambiente pessoal; entretanto, encerrada que foi a sessão, cercou-se
de emissões de substância fluídica cinzento-escura, qual se houvesse repentinamente
apagado, em torno dela, alguma lâmpada invisível.
Impressionado, dirigi-me
a Sidônio, com natural indagação, ao que ele me respondeu atencioso:
- A pobrezinha
encontra-se debaixo de verdadeira tempestade de fluidos malignos que lhe vão
sendo desfechados por entidades menos esclarecidas, com as quais se sintonizou,
inadvertidamente, pelos fios negros do ciúme. Enquanto se acha sob nossa
influência direta, mormente nos trabalhos espirituais de ordem coletiva, em que
age como válvula captadora das forças gerais dos assistentes, desfruta bom
ânimo e alegria, porque o médium é sempre uma fonte que dá e recebe, quando em
função entre os dois planos; terminada, contudo, a tarefa, Isaura volta às
tristes condições a que se relegou.
- Não há, porém, algum
recurso para socorrê-la? - Indaguei, curioso.
- Sem dúvida - elucidou o
orientador da pequena e simpática instituição -, e, porque não a abandonamos,
ainda não sucumbiu. É imprescindível, todavia, num processo de semelhante
natureza, agir com cautela, sem humilhá-la e sem feri-la. Quando defendemos um
broto tenro, do qual é justo aguardar preciosa colheita no porvir, é necessário
combater os vermes invasores, sem atingi-lo. Crestar o grelo de hoje é perder a
colheita de amanhã. Nossa irmã é valorosa cooperadora, revela qualidades
apreciáveis, e dignas, porém, não perdeu ainda a noção de exclusivismo sobre a
vida do companheiro e, através dessa brecha que a induz a violentas vibrações
de cólera, perde excelentes oportunidades de servir e elevar-se. Hoje, viveu um
dos seus dias mais infelizes, entregando-se totalmente a esse gênero de
flagelação interior. Reclama-nos concurso ativo, nesta noite, pois cada servo
acordado para o bem, quando se projeta em determinada faixa de vibrações
inferiores durante o dia, marca quase sempre uma entrevista pessoal, para a
noite, com os seres e as forças que a povoam.
Estampou na fisionomia
significativa expressão e acrescentou:
- Enquanto a criatura é
vulgar e não se destaca por aspirações de ordem superior, as inteligências
pervertidas não se preocupam com ela; no entanto, logo que demonstre propósitos
de sublimação, apura-se-lhe o tom vibratório, passa a ser notada pelos
característicos de elevação e é naturalmente perseguida por quem se refugia na
inveja ou na rebelião silenciosa, visto não conformar-se com o progresso
alheio.
(...) coloquei-me, ao
lado de Sidônio (1), em interessante conversação.
Por enquanto –
explicou-me a certa altura da útil palestra -, este domicílio está sob a guarda
dos nossos processos de vigilância. Entidades perturbadoras ou criminosas não
despõem de acesso até aqui, mas nossa amiga, transtornada pelo ciúme, vai, ela
mesma, ao encalço de maus conselheiros. Esperemos que abandone o veículo de
carne, soba a ação do sono, e verás, de perto.
Decorridas apenas duas
horas, vimos o senhor Silva que nos acenava da porta próxima, já desligado do
corpo físico. Sidônio levantou-se e, convocando um de seus auxiliares,
recomendou-lhe acompanhasse o dono da casa em proveitosa excursão de estudos.
O irmão Silva, junto de
nós, alegou, pesaroso:
-
Tanto desejava que Isaura viesse, mas não me atendeu aos apelos!
- Deixa-a! – observou
Sidônio, com inflexão de energia na voz – naturalmente ainda hoje não se acha
preparada para atender às lições.
O interlocutor mostrou
profunda tristeza no semblante calmo, porém não vacilou. Seguiu sem delongas, o
cooperador que lhe era apresentado.
Mais alguns minutos e D.
Isaura, fora do corpo de carne, surgiu-nos à vista, revelando o perispírito
intensamente obscuro. Passou rente a nós sem prestar-nos a mínima atenção,
mostrando-se encarcerada em absorvente ideia fixa. Sidônio endereçou-lhe
algumas palavras amigas, que não foram absolutamente ouvidas. Tentou o amigo
tocá-la com a destra luminosa, mas a médium precipitou-se em desabalada carreira,
deixando-nos perceber que a nossa aproximação lhe constituía, naqueles
instantes, aflitiva tortura. Encontrava-se incapaz de assinalar-nos a presença;
entretanto, percebia-nos, instintivamente, as vibrações mentais e demonstrava
temer o contacto espiritual conosco.
O benfeitor explicou-me
que poderia constrangê-la a ouvir-nos, obrigando-a a submeter-se, sem reservas,
à nossa influência; no entanto, semelhante atitude de nosso lado implicaria a
supressão indébita das possibilidades educativas. Isaura, o fundo, era senhora
do próprio destino e, na experiência íntima, dispunha do direito de errar para
melhor aprender – o mais acertado caminho de defesa da própria felicidade. Ali
estava, a fim de ajudá-la, quanto possível, na preservação das forças físicas,
mas não para algemá-la a atitudes com que ainda não pudesse concordar
espontaneamente, nem mesmo em nome do bem que não reclama escravos em sua ação
e, sim, servidores livres, contentes e otimistas.
Com grande surpresa para
mim, o prestimoso guardião continuou explicando que aquela senhora,
efetivamente, detinha extensas possibilidades no serviço aos semelhantes. Caso
quisesse perdê-las temporariamente, outro recurso não nos cabia senão o de
entregá-la à corrente da própria vontade, até que um dia conseguisse ela
própria despertar em plano de compreensão mais alta. Sabia, à saciedade, que o
marido não lhe era propriedade exclusiva, que o ciúme tresloucado só poderia
conduzi-la a perigosa situação espiritual, não ignorava que a palavra do Mestre
exortava os aprendizes ao perdão e ao amor para que os companheiros mais
infelizes não se projetassem nos despenhadeiros fundos da estrada. Entretanto,
se os seus desígnios se demorassem na linha contrária ao roteiro que o plano
superior lhe havia traçado, só nos restaria deixá-la circunscrita aos círculos
da mente em desânimo ou em desespero, a fim de que o tempo lhe ensinasse o
reajustamento próprio.
Depois de pacientes
elucidações, Sidônio concluiu num sorriso melancólico:
- Educação não vem por
imposição. Cada Espírito deverá a si mesmo a ascensão sublime ou a queda
deplorável.
A esse tempo,
acompanhávamos a senhora Silva, fora do corpo de carne, a fugir de seu
domicílio para a via pública. Estugou o passo até encontrar velha casa
desabitada, a cuja sombra se lhe depararam dois malfeitores desencarnados,
inimigos sagazes do serviço de libertação espiritual de que se convertera em
devotada servidora. É evidente que a esperavam com o propósito deliberado de
intoxicar-lhe o pensamento.
Abeiraram-se dela, amistosos
e macios, sem se aperceberem da nossa presença.
- Com que, então, Dona
Isaura - disse um dos embusteiros, apresentando na voz mentiroso acento de
compaixão -, a senhora tem sofrido bastante em seus respeitáveis sentimentos de
mulher...
- Ah! Meu amigo - clamou
a interpelada visivelmente satisfeita por encontrar alguém que se lhe
associasse às dores imaginárias e infantis -, então, o senhor também sabe?
- Como não? - comentou o
interlocutor, enfático - sou um dos Espíritos que a "protegem" e sei
que seu esposo lhe tem sido desalmado verdugo. A fim de "ajudá-la",
tenho seguido o infeliz, por toda parte, surpreendendo-lhe as traições aos
compromissos domésticos.
D. Isaura, em lágrimas,
confiou-se ao fingido amigo.
- Sim - gritou, molestada
-, esta é que é a verdade! Sofro infinitamente... Não existe neste mundo
criatura mais desventurada que eu...
- Reconheço - acentuou o
loquaz perseguidor -, reconheço a extensão de seus padecimentos morais,
vejo-lhe o esforço e o sacrifício e não ignoro que seu marido eleva a voz nas
preces, através das sessões habituais, para simplesmente acobertar as próprias
culpas. Por vezes, em plena oração, entrega-se a pensamentos de lascívia,
fixando senhoras que lhe frequentam o lar.
Envolvendo a médium
imprevidente na melifluidade das frases, aduzia:
- É um absurdo! Dói-me
vê-la algemada a um patife mascarado de apóstolo.
- É isto mesmo... -
confirmava a pobre senhora, qual se fora andorinha delicada, portadora de
importante mensagem, repentinamente presa num tabuleiro de mel -, estou rodeada de gente desonesta. Nunca sofri tanto!
Indicando o quadro
triste, Sidônio informou-me:
- Antes de tudo, os
agentes da desarmonia perturbam-lhe os sentimentos de mulher, para, em seguida,
lhe aniquilarem as possibilidades de missionária. O ciúme e o egoísmo constituem
portas fáceis de acesso à obsessão arrasadora do bem. Pelo exclusivismo
afetivo, a médium, nesta conversação, já se ligou mentalmente aos ardilosos
adversários de seus compromissos sublimes.
Deixando transparecer
imensa tristeza, acrescentou:
- Repara.
O inteligente obsessor
abraçou a senhora, parcialmente desligada do corpo físico, e prosseguiu:
- Dona Isaura, acredite
que somos seus leais amigos. E os protetores verdadeiros são aqueles que, como
nós, lhe conhecem os padecimentos ocultos. Não é justo que se submeta às
arbitrariedades do marido infiel. Abstenha-se de receber-lhe o séquito de
companheiros hipócritas, interessados em orações coletivas, que mais se
assemelham a palhaçadas inúteis. É um perigo entregar-se a práticas mediúnicas,
qual vem fazendo em companhia de gente dessa espécie... Tome cuidado!...
A médium invigilante
arregalou os olhos, impressionada com a estranha inflexão impressa nas palavras
ouvidas, e gritou:
- Aconselhe-me, Espírito
generoso e amigo, que tão bem me conhece o martírio silencioso!
O interlocutor, na
intenção de destruir a célula iluminativa que funcionava com imenso proveito no
santuário doméstico da jovem senhora, assediada agora por seus argumentos
adocicados e venenosos, observou com malícia:
- A senhora não nasceu
com a vocação do picadeiro. Não permita a transformação de sua casa em sala de
espetáculo. Seu marido e suas relações sociais exageram-lhe as faculdades.
Precisa ainda de longo tempo para desenvolver-se suficientemente.
E envolvendo-a nos
pesados véus da dúvida que anulam tantos trabalhadores bem intencionados,
aduziu:
- Já meditou bastante na
mistificação inconsciente? Está convencida de que não engana os outros? É
indispensável acautelar-se. Se estudar a grave questão do Espiritismo, com
inteligência e acerto, reconhecerá que as mensagens escritas por seu intermédio
e as incorporações de entidades supostamente benfeitoras não passam de pálidas
influências de Espíritos perturbados e de alta percentagem dos produtos de seu
próprio cérebro e de sua sensibilidade agitada pelas exigências descabidas das
pessoas que lhe frequentam a casa. Não vê a plena consciência com que se
entrega ao imaginado intercâmbio? Não creia em possibilidades que não possui.
Trate de preservar a dignidade de sua casa, mesmo porque seu esposo não tem
outro objetivo senão o de utilizar-lhe a credulidade excessiva, lançando-a a
triste aventura do ridículo.
A pobre criatura, tão
ingênua e prestimosa, registrava com visível terror aquela conceituação do
assunto.
Espantado com a
passividade de Sidônio, ante aquele assalto, enderecei-lhe a palavra,
respeitoso, porém menos tranquilo:
- Não será razoável
defendê-la?
Ele sorriu
compreensivamente e elucidou:
- Todavia, que fizemos,
há poucas horas, no culto da prece e do socorro fraternal, senão prepará-la à
própria defensiva? Trabalhou mediunicamente conosco; ouviu formosa e comovedora
preleção evangélica contra os perigos do egoísmo enfermiço; colaborou,
decidida, para que o bem se concretizasse e ela própria emprestou-nos os lábios
a fim de ensinarmos princípios de salvação em nome do Cristo, a quem deveria
confiar-se. Entretanto, apenas porque o esposo se dispôs a justa gentileza com
as damas que lhe buscaram a companhia esclarecedora e fraterna, obscureceu o
pensamento no ciúme destruidor e perdeu o equilíbrio íntimo, entregando-se,
inerme, a entidades que lhe exploram o sentimentalismo.
(...)
- Mas não há recurso -
inquiri, sensibilizado - de afastar semelhantes malfeitores?
- Sem dúvida - elucidou
Sidônio, bem humorado -, em toda parte existe contenção e panaceia, remediando
situações pela violência ou pelo engodo prejudiciais, mas, na intimidade de
nossa tarefa, que será mais aconselhável? Espantar moscas ou curar a ferida?
Sorriu, enigmático, e
prosseguiu:
- Tais dificuldades são
lições valiosas que o Espírito do medianeiro, entre encarnados e desencarnados,
deve aproveitar em bendita experiências e não nos compete subtrair o
ensinamento ao aprendiz. Enquanto um trabalhador da mediunidade empresta
ouvidos a histórias que lhe lisonjeiem a esfera pessoal, disso fazendo condição
para cooperar na obra do bem, quer dizer que ainda estima o personalismo
inferior e o fenômeno, acima do serviço que lhe cabe no plano divino. Nessa posição,
demorar-se-á longo tempo entre desencarnados ociosos que disputam a mesma
presa, anulando valiosa ocasião de elevar-se, porque, depois de certo empo de
auxílio desaproveitado, perde provisoriamente a companhia edificante de irmãos
mais evolvidos que tudo fazem inutilmente pelo reerguer no caminho. Então cai
vibratoriamente no nível moral a que se ajusta, convive com as entidades cujo
contacto prefere e acorda, mais tarde, verificando as horas preciosas que
desprezou.
A esse tempo, o obsidente
de Dona Isaura afirmava-lhe, palrador:
- Estude a senhora o
próprio caso. Consulte cientistas competentes. Leia as últimas novidades em
psicanálise e não perca sua oportunidade de restauração, sob pena de
enlouquecer.
E comentava, sacrílego:
- Falo-lhe em nome das
Esferas Superiores, na qualidade de amigo fiel:
- Sim... compreendo... -
concordava a interlocutora, tímida e desapontada.
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(1)
Sidônio: entidade espiritual com quem André Luiz compartilha esta
experiência.
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